Soterrados | Relatos da tragédia de Mariana

Rastro da lama

Em Resplendor–MG, a comunidade indígena Krenak deu adeus ao rio que lhe deu a vida. Conhecido por seu povo como “Uatu”, o já senhor de idade suspirou pela última vez na tarde de 12 de novembro de 2015, uma semana após o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana-MG. Os rejeitos de minério de ferro mataram o doce rio da comunidade descendente dos Botocudos, localizada entre os municípios de Resplendor e Conselheiro Pena. A lama silenciou os cânticos e as poesias de louvor declaradas à entidade. À margem esquerda do Rio Doce, os Krenak perderam o sentido.

Carregada pelos rios Gualaxo do Norte, do Carmo e Doce, a lama ainda afetou mais 35 cidades de Minas Gerais e quatro do Espírito Santo, destruindo edificações e comprometendo os serviços de abastecimento de água e arrecadação dos municípios dependentes dos rios. Treze localidades tiveram o abastecimento de água comprometido. A Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, em Rio Doce-MG, paralisou as atividades por conta dos rejeitos que se concentraram em toda sua extensão e o abastecimento de energia teve de ser remanejado. Em Governador Valadares-MG, a Usina Hidrelétrica de Baguari teve seus equipamentos danificados.

Segundo o Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta relativo ao Rompimento da Barragem de Fundão, o TTAC, elaborado com o auxílio do Ibama, a lama provocou a morte de três toneladas de peixes nos rios e 500kg no mar. Só no Espírito Santo, mais de 7 mil foram coletados mortos. Do solo, tirou a fertilidade e devastou cerca de 374 hectares de cobertura florestal ciliar. Na região em que se encontram as barragens de Santarém e Fundão, até a parte do Rio Gualaxo do Norte em direção ao Rio do Carmo, o impacto é estimado em 560 hectares. Desses, 384 seriam de Mata Atlântica. Seguindo em direção à foz do Rio Doce, a média é de que dos mais de 1 mil hectares de cobertura vegetal atingida, 126 hectares são de Mata Atlântica. A lama interferiu também em áreas de proteção ambiental em Governador Valadares-MG e Dionísio-MG.

Ao encontrar o mar, contaminou 170km de praias, sendo 110km ao norte da foz do Rio Doce e 60km ao sul, incluindo a Reserva Biológica Comboios, local de desova de tartarugas.

Laudo médico sobre o paciente ‘Rio Doce’ após acidente envolvendo o rompimento da Barragem de Fundão.

Se já era um ‘paciente’ em risco, o Rio Doce entrou em estado de coma após os acontecimentos do dia 5 de novembro de 2015. Pela extensão do rio, desde Mariana, em Minas Gerais, até sua derradeira foz no Espírito Santo, não apenas a água, mas toda a paisagem foi danificada. O trauma trouxe consequências que serão sentidas durante anos, mas, das sequelas mais imediatas, destaca-se no paciente ‘Rio Doce’ o assoreamento.

Assoreamento é um termo técnico para um processo em que um corpo d’agua, no caso o Rio Doce, fica cada vez mais raso. Totalmente natural, quando não há intervenção humana. Os 34 milhões de metros cúbicos de rejeitos lançados no meio ambiente anteciparam esse processo em anos. Em Regência–ES, segundo pesquisa de campo das universidades federais de Juiz de Fora e Minas Gerais, trechos do rio em que se passavam grandes navios agora são possíveis atravessar a pé. Um verdadeiro milagre.

Seguindo o rastro de destruição, pela extensa do Rio Doce, todo o bioma aquático pode entrar com uma ação judicial contra a mineradora Samarco, se assim desejar. Vítimas fatais, destruição de berçários de peixes e camarões, habitats destroçados. Uma tragédia grandiosa no delicado ciclo da fauna e flora aquática do Rio, já suficientemente perturbada pela pesca indevida e construções de barragens. Só no trecho entre o Baixo Guandu e Linhares, no Espírito Santo, nos dias imediatos ao rompimento, foram contabilizados mais de 7 mil peixes mortos de 21 espécies. Muitos não puderam ser identificados e alguns já apresentavam sinal de decomposição. O que mal começa a contemplar o tamanho das “sequelas’ causadas, que segundo laudo do Ibama, são ‘intangíveis’.

Subindo mais um pouco, chega-se a Governador Valadares-MG, o carro-chefe dos problemas de captação e contaminação de água. Desde 7 de novembro de 2015, vem sendo feito o monitoramento preventivo do Rio Doce, em que a qualidade da água e o comportamento do rio são ‘prioridades’, segundo relatório da Força- Tarefa do Governo de Minas Gerais. Entre novembro de 2015 e fevereiro de 2016, foram apresentados 6.700 laudos de qualidade de água, tanto marinha quanto do rio, pela empresa Samarco.

De acordo com o Ibama, a qualidade da água não foi comprometida. Mesmo com sua nova cor duvidosa e os níveis de metais levemente alterados (o que define se a água pode ser consumida ou não), a verdade é que água não é tóxica. Segundo o engenheiro civil Davi Trindade , funcionário da empresa Antares, responsável pelo acompanhamento e gestão de áreas potencialmente contaminadas em Governador Valadares, a água do Rio Doce nunca foi adequada para o consumo sem tratamento e essa máxima permanece. Apenas 12 dias após o rompimento da barragem, a prefeitura da cidade declarou que a água era segura para sua utilização.

Em contraponto, a ONG SOS Mata Atlântica apresentou um laudo próprio, em que declarava a água do ‘Rio Doce’ imprópria para o consumo, após expedição realizada entre os dias 6 a 12 de dezembro de 2015.

Como não só de água vive o Rio Doce, sua vegetação também sofreu os impactos da torrente de lama. Foram destruídos 1.469 hectares de vegetação ao longo de 77 km de cursos d´água, incluindo áreas de preservação permanente, deixando uma parte do Rio ‘careca’ em suas margens. Não bastante, o solo também ficou comprometido, pois os rejeitos de minério atrapalham seu pH, dificultando assim o reflorestamento e a reconstrução dos ecossistemas atingidos, de acordo com informações do Ibama.

Acerto de contas

Buscando reparações, em março de 2016, onze órgãos técnicos federais e estaduais envolvidos e que acompanharam o acidente, entre eles o Ibama, o Estado de Minas Gerias, o próprio Departamento Nacional de Produção Ambiental (DNPN), propuseram um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta. O TTAC prevê uma série de ações econômicas e ambientais que deverão ser realizadas pela Samarco em um período de quinze anos. Uma forma de ‘acerto de contas’.

As ações envolvem um Plano de Recuperação do Rio Doce e áreas costeiras, estaurinas e marinha atingidas, composto por inúmeros programas de gestão de rejeitos, melhoria da qualidade da água, restauração florestal, produção de água, conservação da biodiversidade, segurança hídrica, programas de educação ambiental, preservação, segurança e uso sustentável da terra.

Os valores estimados para custear as ações eram, inicialmente, de mais de 20 bilhões de reais. Como grande parte dos programas contemplados no TTAC ainda precisavam ser estudados previamente para a definição das medidas que serão empreendidas, a mensuração dos recursos financeiros para a execução de cada um dos programas reparatórios foi dificultada.

O TERMO DE TRANSAÇÃO E DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA RELATIVO AO ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE FUNDÃO EM MARIANA/MG, publicado pelo Ibama na Nota Técnica nº 001/2016, está disponível clicando aqui.

Insatisfeito com a TTAC, em maio deste ano, o Ministério Público Federal (MPF), que investiga o desastre, abriu uma ação contras as mineradoras Samarco, Vale e BHP, pedindo R$ 155 bilhões em reparação aos danos causados. A ação civil, resultado de seis meses de investigação, tem 359 páginas e apresenta mais de 200 pedidos que pedem soluções para todos os danos causados pelo rompimento da Barragem do Fundão. O MPF não considera que o acordo anterior, assinado em março de 2016 entre União, estados e empresas, contemple os efeitos e o tamanho da tragédia.

O que os R$ 155 bilhões pedidos pelo Ministério Público Federal indenizariam?

R$ 27,464 milhões
Para a conclusão do processo de identificação e delimitação da Terra Indígena de Sete Salões, ocupada pelo povo Krenak, no município de Resplendor (MG)

R$ 1,1 bilhão
Para recuperar ao menos 40 mil hectares de áreas de preservação permanente afetadas e na recuperação de outras áreas ao longo da bacia do rio Doce como forma de compensação pelos danos

R$ 4,1 bilhões
Para a instalação ou melhoria dos sistemas de saneamento básico de municípios atingidos ao longo do rio Doce

R$ 15,5 bilhões
Para indenizar as comunidades afetadas por não poderem realizar atividades como beber, pescar ou promover turismo no rio Doce

R$ 15,5 bilhões
De indenização por dano moral coletivo pelos danos causados pelo rompimento da barragem

R$ 1,5 milhão
De multa diária para o caso de descumprimento das determinações

Além da TTAC e da ação civil do Ministério Público, a Samarco recebeu uma série de multas decorrentes do desastre ambiental:

8/11/2015 - R$ 450 mil
É o valor total de duas multas aplicadas Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) do Espírito Santo em âmbito administrativo. O órgão ainda previu uma terceira multa diária no valor de R$ 50 mil, determinada no dia 20 de novembro.

11/11/2015 - R$ 250 milhões
É o valor total das cinco multas aplicadas à Samarco pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

9/3/2016 e 15/3/2016. - R$ 68,6 milhões
É o valor total das 18 multas aplicadas contra a Samarco pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad) por descumprimentos de solicitações e prazos estabelecidos pelo órgão, além do prejuízo e dano ambiental causados.

19/3/2016 - R$ 112 milhões
Cobrados pelo Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (Copam) pelos danos causados pelo rompimento da Barragem de Fundão.

29/4/2016 - R$ 42 milhões
É o valor da sexta multa aplicada pelo Ibama à Samarco pela destruição de mais de 835 hectares de área de preservação permanente, em consequência do rompimento da Barragem do Fundão.

20/8/2016 - R$ 1 milhão
É o valor da sétima multa aplicada pelo Ibama à Samarco pela omissão de contenção de rejeitos em Barra Longa-MG.

A primeira audiência de conciliação desse processo aconteceu em setembro deste ano.

Na ata da audiência, ficou definida a realização de três perícias: para avaliar os danos da tragédia; para verificar se as ações que estão sendo feitas estão de acordo e para avaliar a situação socioeconômica. As ações serão custeadas pela Samarco, mas vinculadas ao Ministério Publico Federal. O processo para a contratação das perícias deverá ser finalizado até 15 de novembro.