Soterrados | Relatos da tragédia de Mariana

O Gatilho

Houve falha. Assim aponta o relatório Fundão Investigation, contratado pela Samarco para investigar as causas do rompimento. A areia, quando drenada e bem compactada, seguraria o lamaçal pouco resistente do tanque de Fundão. Mas, ao negligenciar um monitoramento eficiente das barragens, a mineradora deixou com que a lama invadisse a parte arenosa. Às vésperas do rompimento, o processo de drenagem não foi suficiente, a pressão da água aumentou e a areia ficou fofa. “Os dois requisitos para ocorrer a liquefação estavam ali. Só faltava o gatilho”, afirma o geólogo e doutor em Engenharia Mineral da Universidade de São Paulo Edilson Pissato.

O acúmulo de rejeito de minério depositado em cima dessa mistura nada firme de areia com lama, resultado de uma mudança errada de projeto em 2009, fez com que o próprio peso do conteúdo da barragem funcionasse como um gatilho, pressionando, empurrando e por fim, rompendo o dique 1. Era como um tubo de pasta de dente sendo pressionado, afirma Norbert R. Morgenstern, um dos geólogos responsáveis pelo relatório.

“Foi negligência e erro operacional”, afirma Pissato, ainda tentando compreender o motivo do recuo do dique. Projetada em 2006 pela empresa Pimenta de Ávila, Fundão tem um histórico de problemas de drenagem. Tudo começou com um vazamento em 2009 e, no próximo ano, um novo vazamento. Em 2012, a situação se agravou e o contrato com a consultoria Pimenta de Ávila foi por água abaixo. A Samarco queria, a partir de então, reparar os danos por conta própria em paralelo com a ajuda da nova consultoria: a VogBR.

Vistoria do trecho atingido pelo rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais.
Felipe Werneck - Ascom/Ibama

E os reparos foram realizados A partir da falha no dreno em 2009, a Samarco revisou o projeto inicial para consertos no ano seguinte. Para não correr risco de saturação, construíram um tapete drenante. Não funcionou e, a lama, que retém muita água, novamente se depositou em áreas impróprias. Cheia de falhas na barragem, as operações em Fundão deveriam ter sido interrompidas, mas, ao invés disso, a empresa propôs um novo projeto solução e, em 2012, recuou ainda mais o último dique sob uma base de lama instável e deu continuidade no alteamento em cima dos próprios sedimentos.

O geólogo explica que a nova camada, curvando-se em formato L para que pudesse comportar um maior volume de rejeitos, sobrecarregou e extravasou o lamaçal localizado na ombreira esquerda do tanque. “O problema não foi nas camadas mais antigas, mas sim, na parte mais nova, no aterro executado em cima, por último,” conclui Pissato. Nessa situação, qualquer pressão ou tremor sísmico poderia ter provocado o rompimento.

Em depoimento ao delegado da Polícia Civil de Minas Gerais, Rodrigo Bustamante, a gerente de Geotecnia e Hidrogeologia da Samarco, Daviely Rodrigues Silva, responsável pelo monitoramento da barragem, afirmou que nenhum órgão ambiental de Minas Gerais foi avisado sobre a nova mudança de eixo em 2012, nem a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

Em razão das recentes divulgações na imprensa, relativas ao desastre ocorrido em Mariana, no dia 05 de novembro de 2015, o Governo de Minas Gerais esclarece que:

1 – Os órgãos ambientais estaduais reafirmam que não receberam projetos da empresa Samarco relativos à mudança de eixo da estrutura na Barragem de Fundão;

2 – A empresa, em nenhum momento, apresentou pedido de autorização de projeto ou comunicado específico acerca da mudança de eixo da referida barragem;

3 – O licenciamento ambiental não é instrumento para autorizar alteração de projeto na estrutura da barragem. Tal autorização e licenciamento só se dariam após apresentação de questionamento oficial específico sobre suas necessidades – procedimento não realizado pela empresa;

4 – Por não haver solicitação da empresa para mudanças estruturais na barragem, os documentos trazidos ao processo não tinham por objetivo fazer monitoramento do recuo de eixo;

5 – Os órgãos de controle interno e externo seguem, de maneira coordenada na investigação das causas e responsáveis pela tragédia, para, concluídos os processos de apuração, sugerir melhorias estruturais nas atividades de fiscalização.
Secretaria de Estado de Meio-Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais Sistema Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais

O desastre se anunciava com outro vazamento em 2013 e, em 2014, numa consultoria do projetista de Fundão, Joaquim Pimenta de Ávila, um alerta foi dado. “Apareceu uma trinca no recuo do eixo”, a recomendação era de que fosse feita a instalação de mais nove piezômetros, capazes de medir a pressão da água no solo, a fim de evitar a saturação e liquefação. Ele disse à Polícia Federal que não sabia se as orientações tinham sido atendidas.

Em contrapartida, a fiscalização do Departamento Nacional de Produção Mineral, classificou Fundão com baixo risco de acidente, categoria que é definida pelo modo como a barragem é gerida pela própria empresa. “Isso é preocupante porque prova que a avaliação do DNPM não é confiável e que os critérios utilizados não são adequados e precisam ser revistos”, comenta Pissato, que reitera a proporção da barragem e que essa mesma fórmula de fiscalização já se mostrou um problema desde o início da mineração, com o desastre em Itabirito, na Mina do Fernandinho.

Cicatrizes de Minas Gerais

1986

Itabirito

O primeiro acidente que se tem registro aconteceu em Itabirito, com o rompimento da barragem de rejeitos da Mina do Fernandinho. Sete pessoas morreram.

1997

Rio Acima e Itabirito

Rompimento da barragem Rio das Pedras, em Itabirito, fez a água provocar 82 quilômetros de destruição ao longo do rio das Velhas, inclusive no Rio Acima, em Belo Horizonte.

2001

Nova Lima

Em junho de 2001, cinco pessoas morreram e 79 hectares de Mata Atlântica foram devastados após o rompimento de uma barragem de rejeitos de minério de ferro da Mineração Rio Verde, em São Sebastião das Águas Claras, no Distrito de Macacos, em Nova Lima.

2003

Cataguases

1,4 bilhão de litros de lixívia negra vazaram do reservatório da Indústria Cataguases de papel e celulose, em 29 de março de 2003. Os rios Pomba e Paraíba do Sul foram atingidos e 39 municípios da Zona da Mata e oito cidades do Rio de Janeiro foram prejudicados. Depois do acidente, a Feam começou a fiscalizar as barragens em MG.

2007

Miraí

Em 2007, dois milhões de metros cúbicos de bauxita foram espalhados pela cidade de Miraí e por outros quatros municípios da região após uma das barragens da mineradora Rio Pomba Cataguases se romper. Mais de quatro mil moradores ficaram sem casas.

2014

Itabirito

Em setembro de 2014, o rompimento da barragem de rejeito de minério da Mineração Herculano, provocada por um deslizamento de terra, ocasionou a morte de três funcionários, afetou um riacho e deixou 300 residências sem água e energia elétrica, em Itabirito

Documentações em dia apresentadas pela Samarco fizeram com que o DNPM não vistoriasse o local, pois haviam outras barragens com maior risco de rompimento. 130 metros era a altura de Fundão, divulgada no último cadastro, em 2013 e mais um alerta foi dispensado. Pissato afirma que, para as barragens de terra, a altura ideal é até 50 metros, que seria o limite de segurança, no entanto, o barramento pode aumentar atrelado a um melhor controle e monitoramento, que também não foi realizado. Uma das normas prevê que a quantidade de rejeitos acumulados por ano deve ser entre 5 a 10 metros, no máximo. Em Fundão eram 15 metros por ano.

Vistoria do trecho atingido pelo rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais.
Felipe Werneck - Ascom/Ibama

A recomendação havia sido dada. A falha operacional foi apontada e o relatório internacional encomendado pela Samarco, Vale e BHP Billiton acusa a mineradora como a responsável pelo acidente, que acabou por enterrar, ao longo de 650 km de lama, todos os prêmios e destaques que já recebeu de ‘melhor empresa do ano’, ‘top 500 da América Latina’ e de melhor mineradora. Ainda no ano em que se tornou responsável pelo maior crime ambiental do Brasil, dois de seus projetos haviam sido premiados pela revista Minérios & Minerales. “Uma empresa de mineração visa o lucro, a Samarco não é diferente”, afirma o geólogo Paulo Boggiani. Desde 1977, a produção de minério de ferro tem aumentado drasticamente e em 2014, a empresa teve capacidade de produzir mais de 30 milhões de toneladas de pelotas por ano. 7,6 bilhões de reais de lucro em 2014, registrados pela revista Valor Econômico, poderiam ter resolvido grande parte das imperfeições da Samarco, mas, para Boggiani,

O baixo custo das barragens de terra e a omissão nos monitoramentos necessários, fizeram com que a mineradora optasse por ignorar alertas de risco e escolhesse ouvir o barulho de famílias, rios, animais, casas e escolas sendo destruídas pela parte inutilizável do minério que vazou da barragem de Fundão.

Nem o som de uma sirene. Não houve nada. “Houve contato via telefone com a Defesa Civil, prefeitura e alguns moradores”, declarou o engenheiro Germano Lopes, gerente-geral de projetos da Samarco. Previsto pela Lei de Segurança de Barragens (12.334/2010), soar a sirene em caso de ameaça de rompimento seria a atitude de maior importância no plano de ação emergencial. Mas a Samarco não possuía o instrumento de alerta e optou por anunciar a tragédia aos moradores de Bento via telefone.

Procurada pela equipe de reportagem Soterrados, a Samarco preferiu não responder aos questionamentos enviados, alegando que todas as respostas e informações estavam disponíveis no próprio site.

Manifestação contra a mineradora Samarco, em abril de 2016.
Sarah Bulhões

Às 15h30 do dia 05 de novembro de 2015, o presidente da mineradora Ricardo Vescovi estava em uma reunião, em Belo Horizonte, na sede da Samarco, discutindo justamente sobre segurança do trabalho quando o telefone de um colega de trabalho tocou. Ele se virou para Vescovi e disse: “Rompeu a barragem de Fundão”. Vescovi gelou. Em fevereiro de 2016, o delegado Rodrigo Bustamante, da Polícia Civil divulgou o resultado do primeiro inquérito e condenou o diretor-presidente Vescovi, Daviely Rodrigues e mais cinco pessoas pelos crimes de homicídio com dolo eventual, inundação e corrupção ou poluição de água potável. Pelos crimes ambientais, a Polícia Federal indiciou oito pessoas e as três empresas: Samarco, Vale e VogBR.

Desde novembro de 2015, as atividades da Samarco foram paralisadas e Roberto Lúcio de Carvalho assumiu a presidência da mineradora. Em poucos diálogos concebidos à mídia, o novo diretor-presidente tenta recuperar a glória da mineradora em entrevista à Revista Ecológico, na qual ele reafirma a notoriedade mundial da Samarco, além de enfatizar que todos os procedimentos tomados foram baseados em rigor e técnicas de segurança. “A Samarco voltará a ser referência”, acredita Roberto Carvalho.

De uma trinca na ombreira esquerda de Fundão, 55 milhões de metros cúbicos de lama desenharam o caminho da destruição. E agora, José?