Soterrados | Relatos da tragédia de Mariana

Fim de Festa

O último final de semana de julho de 2015 era, tradicionalmente, recebido com ansiedade em Bento Rodrigues e a data no calendário costumava destacar-se mais do que as outras. Uma energia diferente tomava os arredores, semanas antes do início da festa de São Bento, padroeiro da pacata comunidade. Os ensaios do coral da Igreja fluiam, incessantemente, para alcançar as notas perfeitas na hora da apresentação. Até as rodadas de truco, que aconteciam ao lado da Capela de Bento, no Bar da Sandra, parada obrigatória para quem visitava o subdistrito, tinham outro clima ao longo do período que antecedia o grande evento.

As comemorações de São Bento, em julho, e de Nossa Senhora das Mercês, em setembro eram as únicas quebras de sossego do primeiro subdistrito devastado pelas ondas da Samarco. Em Bento, era comum ver crianças sacolejando para lá e para cá o dia todo na rua, sem deixar os pais preocupados. Como todos se conheciam, sempre tinha alguém tomando conta dos pequenos e o movimento de carros nunca foi dos maiores. A rotina dos moradores dividia-se em longas caminhadas pelas ruas, colher os frutos das hortas caseiras, acordar com o galo cantando para abrir os pequenos comércios, prosear, e visitar o centro de Mariana. Os domingos eram reservados para gozar das belezas da comunidade, aproveitar as tardes na praça e, no final do dia, ir à missa.

Paracatu de Baixo, outro subdistrito devastado pelo rompimento de Fundão, vivia o mesmo clima de interior mineiro que seu ‘irmão’, Bento Rodrigues. Era comum um cumprimento entre os moradores que se cruzavam nas vielas de paralelepípedos se tornar um café da tarde, sempre acompanhado de muita conversa, risadas e pão de queijo quentinho. A vizinhança era extensa e a tranquilidade tão grande que muitas casas não tinham portões. Próximo ao Natal, a comunidade ganhava cor; a agitação e ansiedade tomavam conta de todos dos preparativos para a maior festa da região: a Folia de Reis de Paracatu de Baixo.

Os dois lugares, desde os séculos passados, já despertavam a curiosidade dos viajantes pela simpatia e fé. As Igrejas de Bento e Paracatu eram seculares e os maiores bens que os subdistritos guardavam em seus quintais. Num piscar de olhos, naquele 5 de novembro de 2015, a lama veio e congelou as cenas do cotidiano. Tudo ficou exatamente em seu lugar e, hoje, meses depois da tragédia, quem ainda volta às comunidades, encontra os pertences - aqueles que não foram saqueados - misturado aos rejeitos de minério. Pedaços de histórias esparramados por aí.

O que sobrou são cidades abandonadas. Acenderam as luzes. Fim de festa.

Em abril de 2016, já fazia seis meses que Maria das Graças, mais conhecida como Dona Maria, chegava em casa e não encontrava sua fiel cadela na porta de casa lhe esperando. Luli às vezes estava deitada dormindo perto da entrada, às vezes vinha correndo em sua direção, apoiando as patinhas no seu colo e latindo as notícias do dia. Nunca mais apareceu depois do rompimento. Soterrada pela lama, provavelmente, era uma familiaridade a menos naquela cidade que Dona Maria foi obrigada a chamar de casa: Mariana em Minas Gerais.

No lugar das ruas quentes de Bento, onde conhecia tudo como a palma da mão calejada por anos de trabalho na roça, existia as vielas escuras de Mariana, que não inspiravam mais confiança do que uma caverna sombria. Não conhecia nada ali e verdade seja dita, mesmo passado o tempo, tinha medo de conhecer. Os caminhos não eram os mesmos do saudoso Bento, onde podia passear a vontade, onde cumprimentava quem quer que passasse ao seu lado, pois conhecia as 630 pessoas que ali moravam. De vista, de nome ou de intimidade. “Zézinho da Irene, Vintinho do bar da Geralda...” recitava os nomes do seu antigo cotidiano.

  • No centro de Mariana, Dona Maria tenta reconstruir a vida
    Rafael Turchetti

  • Dona Maria tentando andar sobre os escombros em Bento Rodrigues
    Sarah Bulhões

Pensava no Bento com frequência, nos cultos de domingo de manhã, na festa da comunidade da igreja, na comida boa que fazia para a família inteira durante feriados. Ainda era abril, mas já pensava com saudades no Natal da vizinhança. Agora todos estavam separados, espalhados pela cidade, distanciados não por algumas boas passadas, mas por caminhos tortuosos, desconhecidos e cheios de carros. “Tenho saudade...” dizia. Especialmente do netinho, Júlio, cuja convivência, antes do mar de lama, era constante. Agora precisava de um ônibus para vê-lo.

Como todos os desabrigados, Dona Maria pode escolher um local para se mudar assim que a situação nos hotéis ficou insustentável. Isso foi ainda em dezembro de 2015, mas mesmo agora, olhava para casa alugada e não sentia que era sua. Não tinha vontade de decorar, muito menos comprar fogão, sofá, armário, tudo como tinha de igual no Bento. O dinheiro existia, a mineradora Samarco se encarregava de auxiliar financeiramente todos os ex-moradores e, posteriormente, lhes daria uma indenização. A vontade faltava. E se tudo fosse destruído novamente? E se a empresa subitamente retirasse o apoio? Essas eram dúvidas constantes na cabeça da lavradora. O contrato de aluguel é válido por um ano e o projeto de ações da Samarco apresenta propostas até 2025. “Mas a gente nunca sabe o dia de amanhã não é mesmo?” se lamenta Maria.

Com os dias se arrastando, passava o tempo fazendo o serviço de casa e esperando a aposentadoria. Não tinha vontade de uma nova Luli, simplesmente não queria se apegar de novo. Tinha visitado o antigo Bento uma ou outra vez, mas olhar a destruição não lhe trazia conforto. Daquilo ali, só conseguiu salvar os documentos, a família e umas panelas. Tinha fé, no entanto, no que o futuro lhe reservava. Um novo Bento, igual ao anterior, com o mesmo nome até. Nunca se sabe o dia do amanhã e a reconstrução aconteceria nos próximos quatro anos, segundo os documentos da mineradora, mas Dona Maria esperaria ansiosamente pelo dia.

Há cinco meses em Mariana, Vitor observa a cidade, enquanto diz preferir a vida em Bento Rodrigues
Sarah Bulhões

O adolescente conta da vida como um adulto. O Vitinho, com 19 anos, tem o olhar sério e a alma velha de quem já passou por muita coisa. Ambos os pais morreram e ele mora com a irmã e a sobrinha na casa alugada pela Samarco aos desabrigados pós-tragédia. Das coisas que recuperadas da destruição, consequência do rompimento da barragem de Fundão, salvou apenas a camisa do corpo, uma cueca e a sua mente. Vitinho se preparou psicologicamente para seguir em frente. ‘Tudo na vida tem seu lado positivo, nada na vida vem só pra te derrubar’ diz com a certeza de quem já recomeçou a vida mais de uma vez.

Mesmo assim, a lista do que sente falta supera de longe aquela das vantagens da cidade de Mariana, em Minas Gerais. A primeira coisa que lhe vem à mente são os amigos, a união da comunidade, o jeito que poderia andar pelo distrito tranquilamente e sempre encontrar alguém com quem jogar bola ou videogame. Com quem dar risada ou contar uma história. Coisas simples que às vezes passam despercebidas, como poder ir a pé onde quisesse ou ter a confiança que sua casa estaria ali quando voltasse da escola.

No primeiro momento que retornou ao local devastado, não encontrou nada que o fizesse lembrar-se das tardes jogando bola, trabalhando no famoso bar da Sandra, encontrando com os amigos ou simplesmente subindo e descendo as ruas do Bento. O campinho de futebol estava irreconhecível, do bar mal sobrou as estruturas e as ruas só levavam a lugares que não existiam mais.

Diz pra quem quiser ouvir que ‘O Natal do Bento era muito melhor do que qualquer outro’. A festa passava por toda a comunidade, amigos, vizinhos e parentes se misturando pelas casas e praças, desejando felicidades e boas festas. Um quadro muito bonito, manchado um pouco pela incerteza que o Natal de 2016, o segundo após o desastre, traz.

Por isso busca certezas e na sua nova rotina procura um emprego, algo que deixe a cidade de Mariana mais familiar. Tenta também tirar a habilitação de motorista. Desejo esse que poderia ser de um menino como outro qualquer.

Com a confiança que só os jovens possuem, o adolescente não duvida da reconstrução do Bento Rodrigues, já definido como o terreno Lucila, próximo da antiga localidade do Bento Rodrigues ‘antigo’. Se em dezembro de 2015 não se sentia seguro em dizer ‘ Eu voltaria’, agora está totalmente resoluto. O prazo de entrega é até 2019, segundo própria Samarco. ‘E o Natal lá será incrível’ sorri Vitinho.

De tudo o que tinha na casa, o objeto preferido era o violão de madeira, envolvido em uma capa preta, que de tão bem cuidado parecia até novo. Desde sempre seu Zé toca e compõe sertanejo, então o apego ao instrumento vem daí. Já no fim de 1982, quando chegou em Bento Rodrigues transferido pela firma, José do Nascimento de Jesus e sua amigada Dona Irene, participavam da missa semanalmente com os moradores das pouco mais de 20 casas que existiam por lá e, logo de início, na missa mesmo, Zézinho já pôs em prática seu hobby favorito: tocar violão. Se não fosse pelo acontecimento tão marcante do dia 05, seu Zé, que já tem a pele marcada pelos anos de trabalho e o cabelo acinzentado, quase branco, anunciando a chegada da idade, estaria alegrando os frequentadores assíduos da igreja de São Bento, padroeiro do subdistrito, até hoje.

Assim como a música, Bento importava demais para Zé e Irene. Chegar em casa e ver o quintal forrado de verduras bem verdinhas, colher a fruta para fazer o próprio suco, tomar leite e comer queijo feitos por lá, são detalhes que enchem de brilho os olhos do casal quando se recordam da vida que tinham. Com o rosto bem marcado pela expressão do sorriso que nunca vai embora, Dona Irene se enche de orgulho para falar do pacato subdistrito que moravam, “se você saísse na rua e passasse perto de um amigo ou qualquer coisa, era um bom dia, um ‘boa tarde’, todo mundo sorrindo, todo mundo feliz”.

Sem um pingo de incerteza na hora de dizer, o que eles mais sentem falta é da união do povo, que sempre estava junto, não importava onde. Se não era na missa, era no ensaio, no coral, na apresentação de música, ou jogando truco no bar que ficava de frente com a Igreja. “Lá a gente estava sempre todo dia junto, à noite e no meio do dia, de manhã, todo mundo junto, uma vida saudável. Agora não tem como”, relembra Zézinho ao contar como o grande centro da cidade distanciou todo mundo.

As mudanças foram tantas após a chegada da lama que o casal de músicos até mudou a data de aniversário. Dona Irene veio ao mundo poucos dias antes de Zézinho, mas esse ano a comemoração foi no mesmo dia em que eles, e todos os sobreviventes de Bento, nasceram novamente, no dia 5 de novembro de 2016.

Era como se o pedaço de terra que tinha em Paracatu fosse o lugar preferido no mundo, como se fosse um paraíso e, por isso, a advogada aposentada , Rosária Ferreira. Duarte Frade, chamava os pastos, o rio, as flores e a sinfonia natural de pássaros, gados e insetos, de Shangri-lá. Com três filhos já criados e uma boa vida no centro de Mariana, Dona Rosária passava a semana em paz no sítio em Paracatu.

O rancho de 16 hectares ficava pertinho do rio e além de diversos cavalos, o terreno tinha nas prateleiras mais de 100 troféus de competição de Marcha acumulados, todos conquistados pelas filhas da advogada. “Era a história da vida das meninas, elas sempre montaram, então os troféus elas que ganharam”, lembra com orgulho ao encontrar uma das selas perdida pelo lamaçal.

Paracatu é lembrado por ela não só pela natureza, mas por todas as festas que de costume aconteciam por lá e como exemplo Rosária cita o natal, “aqui era uma festa né. Vinham vários amigos, meus filhos, muitos vizinhos. A gente fazia um natal comunitário na verdade.” E lembra também da harmonia em que todos viviam no segundo local mais devastado pela lama, como se fossem todos ligados de alguma forma, “Paracatu sempre foi um lugar pequeno, mas muito bom de viver. Pessoal todo mundo era amigo, era uma grande família na verdade... uma grande família

Nascida em Piranga, outra cidade de minas, e moradora de Mariana há mais de 40 anos, Rosária conheceu seu pedacinho de terra preferido em algumas visitas que fez em seu antigo emprego na prefeitura da cidade. Depois que se apaixonou, juntou um dinheiro e conseguiu terminar a construção, a advogada diz que escolheu viver no rancho pela rotina sossegada. Por lá a diversão era pescar, passear, arriar e cuidar dos cavalos, admirar as plantas e paisagens que o pequeno lugar, mais parecido com um vale por ser cercado de montanhas, tinha de sobra.

Por todas essas lembranças é que dona Rosária vê seu sonho destruído e enterrado em uma onda de ferro, que hoje já virou pó. Voltar a morar lá? “Esse sonho para mim já acabou. Tenho receio da outra barragem, não uma, mas tem duas barragens lá ainda. Se uma que estourou fez esse desastre todo, imagine duas.” Mesmo com tanta tristeza e saudades que mexer nos restos do rancho trouxe à antiga moradora de Paracatu, o otimismo teve de prevalecer na hora de seguir em frente, “perder é muito triste mesmo sabe... Mas graças a deus eu não perdi a vida né? Então, coragem para recomeçar”.

Mesmo com o horário de verão, Iracema acordava cedo todos os dias para cuidar das hortaliças, diversas e coloridas. Andava poucos passos e já tinha gente para conversar. A praça era sempre lotada. As cartas do baralho nunca estavam guardadas, era jogo daqui, jogo dali e os velhinhos de Paracatu disputavam as partidas de truco com fervor. Com a laranja na mão, Iracema Pereira de Oliveira não perdia a oportunidade de gritar “Truco marreco!”. Ela é “boa no jogo e nunca deixa desejar”, os companheiros elogiavam. Essa era a rotina no subdistrito do católico Monsenhor Horta e o verão ainda não tinha dado as caras, estava ainda na estação do meio termo, das flores, do calor só do meio-dia. As ruas eram largas e algumas senhoras alimentavam a criação, outras vigiavam o crescimento da alface, dos tomates robustos, mas o colorido era das roupas que eram penduradas ao ar livre nos varais extensos de Iracema.

Sorvetes perdidos após a lama chegar ao subdistrito de Paracatu de Baixo.
Sarah Bulhões

“Lá tinha espaço, o terreno lá era grande. Aqui, em vista de lá, é pequenininho demais”, reclamava Iracema ao se referir a sua nova casa em Mariana. O varal é pequeno e fica perto do quartinho do fundo, “ninguém vê mais nada”. Iracema ficou a observar o varal, as roupas e a vista da cidade grande. Mas ela não gosta e nem se sente bem na casa oferecida pela Samarco até a reconstrução do novo Paracatu. As hortaliças deixaram de existir, o truco também. A laranja está na fruteira, em cima da mesa de vidro e não no pé. Aos 49 anos de idade, Iracema abdicou da rotina e da sorveteria que lhe dava o dinheiro semanal, na verdade, em plena terça-feira os potes já estavam quase vazios. Antes do desastre, Iracema fazia sorvete de tudo quanto é tipo: chocolate, leite condensado, abacaxi, creme e até maracujá. Na última semana de outubro, ela tinha vendido todos os sabores e precisava fazer tudo de novo, era dinheiro garantido, já que o calor do verão se acentuava nas curvas do rio Gualaxo do Norte, que cruzava Paracatu.

Na manhã do dia 04, as compras dos ingredientes foram feitas em Mariana e por lá, o dinheiro ficou. O planejado era vender na garagem de casa durante os dias que estavam por vir. Os sorvetes estavam fresquinhos e Iracema não escondia a felicidade de lucrar durante o feriado. Na quinta, dia seguinte, a lama chegou e desapareceu com tudo.

Uma casa alugada. Algumas cestas básicas durante o ano. “Alguma pouca ajuda da Samarco”, ela diz. O presente está ao lado de Iracema, numa viela do centro urbano de Mariana e o passado, longe, há quase 35 km de distância, numa Paracatu fantasma, com uma névoa marrom que insiste em permanecer por lá. Os remédios em caixinhas ao lado da cama de Iracema amenizam a depressão estampada no rosto da anfitriã da nova casa. Às 21h, um comprimido para dormir, o restante é esforço para crer que a incerteza de dias futuros vai passar.

Zezinho durante visita ao subdistrito de Paracatu de Baixo, em Mariana-MG
Laura Baiè

Há quase um ano da tragédia, José do Patrocínio de Oliveira ainda não quer acreditar no que aconteceu. Insistente, passa mais tempo em Paracatu visitando as ruínas de sua casa e da comunidade que nasceu, cresceu, teve seus 16 filhos, casou e descasou ao longo de quase nove décadas de vida, do que em seu novo lar, em Mariana-MG. Inquieto em sua fala e gestos Seu Zezinho. é Paracatu em forma de gente.

Palavras de sua ‘amiga’ Maria. “Ele já está velho, mas tem energia sobrando”. Ele mesmo que o diga. “Meu filho mais novo acabou de completar 20 anos. Só Paracatu que acalmava um pouco essa minha inquietação”, brinca.

E seu Zé a recompensou bem. Desde os nove anos, se dedicou a organizar a Folia de Reis, a maior festa da comunidade. O evento era tão pomposo que vinham centenas de pessoas da região para o pacato local na última semana do ano. As noites eram embaladas ao som da cantoria das procissões, coloridas pelas bandeiras carregadas pelos fiéis e, na frente deles, comandando a andança, o tambor dava o ritmo à caminhada.

Seu Zezinho cresceu em meio a Folia e conhecia cada detalhe da festa, como também cada paralelepípedo das ruas que restaram em Paracatu. Na vizinhança, era figura conhecida. Levava uma vida humilde, de muitas conversas e histórias dos tempos em que as mãos eram calejadas pela enxada. Ainda restam os calos que foram deixados há um ano atrás, antes da tragédia. Seu Zé capinava seu quintal todos os dias com o mesmo carinho que cuidava de seus animais. Um homem inquieto.

De Paracatu, Zé guardou em sua memória o pátio da Igreja como seu lugar preferido da comunidade. Ali, além de ser o local de concentração da festa do final do ano, foi palco de várias declarações de amor de Zezinho e muitos pedidos com fé. Para ter mais saúde, mais dinheiro, mas nunca mais felicidade. “Eu namorei muito nesse pátio da Igreja!” As marcas de expressão em seu rosto evidenciam o quanto ele foi feliz ao longo de sua vida e Paracatu era a grande responsável. "Ocê quer saber de uma coisa? Eu tive várias mulheres, mas nunca me amei nenhuma delas da mesma forma que amo Paracatu".

Depois da lama, deixou para trás sua casa, em que tinha como vizinhança um de seus filhos, Romeu de Oliveira, ex - trabalhador terceirizado da Samarco. Passou a dividir uma casinha, ainda em uma rua de paralelepípedo, no centro de Mariana-MG, com sua Maria. Eles já moravam juntos no subdistrito, mas sempre mantiveram um relacionamento aberto. Inclusive, dona Maria também é uma jovem senhora, que estava cursando o Ensino Fundamental. Na Escola Municipal de Paracatu, aprendeu a ler e a escrever, dons que, mais tarde, após ir embora da comunidade, ajudaram a transformar sua dor em poesia.

Hoje, as marcas de expressão dos sorrisos de Zé dão espaço à testa franzida e os olhos baixos, de quem cultiva a saudade no olhar. “Aqui tá bom, mas tá ruim, eu tô desassossegado em Mariana. Só como e durmo. Como alguém consegue viver assim? Eu preciso andar, cuidar dos meus bichos. Da minha horta.”

Quando questionado sobre o que irá fazer de sua vida enquanto espera a reconstrução da comunidade, ele já sabe a resposta. “Olha, se demorarem muito tempo para reconstruir minha casa, eu não vou esperar não. Eu mesmo vou reconstruí-la. Eu nasci em Paracatu e é lá que eu vou morrer.”

Na escola de Gesteira nada sobrou. Apenas a memória de dona Geralda de Araújo. e seus alunos, “até hoje quando peço para as crianças escreverem uma redação, elas só falam do desastre”, conta a professora.

Seja nas paisagens ou construções, há uma mesma marca: a cor marrom. “Quem vier pra cá depois daquela quinta-feira, não imagina que por aqui passava um rio vivo e cristalino. Nem que pra lá, as criações pastavam soltas numa grama verdinha”, relembra Geralda, mais conhecida como Naná, enquanto observa da frente de sua casa, o rastro deixado pela Samarco.

  • Igreja de Gesteira sobreviveu a lama e agora é local de trabalho para ONGs de arqueologia. - Sarah Bulhões

  • Reflexo das árvores secas nas margens do rio Gualaxo do Norte, em Gesteira. - Laura Baiè

Esse mesmo lugar foi onde Naná não pregou os olhos durante a noite do dia 05. Os boatos que chegaram à escola municipal de Gesteira por volta das 19h eram reais. Em 1979, uma chuva incessante encheu os rios Gualaxo e Carmo e as casas inundaram. Em 2015, a sensação foi igual, mas a lama não deixou por menos. A devastação trazida pelo rio Gualaxo do Norte arrancou a ponte que ligava Barra Longa ao pequeno distrito e, sem ter para onde correr, as poucas famílias que ali moravam ficaram ilhadas. Isso durou 15 dias. “Somente carros 4x4 da Samarco conseguiam passar por lá”, recorda Naná, que anda vive na mesma casa há 30 anos.

Mas a casa não é a mesma com a nova rotina. “Tem que limpar praticamente todo dia, a poeira que sobe aqui é demais!”. Há quase um ano no mesmo local, a lama virou terra batida e são poucos os que decidem retornar à Velha Gesteira, como era conhecida. Lá, somente a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do distrito, ficou de pé.